Fonte: Conjur | Link
Por Ricardo Botós da Silva Neves e Camila Mendes Monteiro
Em recente decisão, o STJ, ao analisar o REsp 774.523-SP, entendeu que a não declaração do Banco Central de investimento em um fundo no exterior caracteriza a conduta de evasão de divisas, pois considerou que a manutenção das cotas corresponde a “depósito” e, com isso, preenchido estaria o tipo penal capitulado no artigo 22, parágrafo único, parte final da Lei 7.492/86. O entendimento da 5ª Turma foi de que o termo “depósito” deve ser ampliado e, com isso não limitado à manutenção de dinheiro em casas bancárias no exterior, mas, sim, qualquer tipo de disponibilidade de recursos, como no caso de aplicações em fundos de investimento.
Ainda, foi utilizado como fundamento que a simples falta de declaração à Receita Federal caracterizaria, em tese, o crime de evasão de divisas.
O caso analisado pelo STJ é de singular importância, podendo ser considerado o leading case nos tribunais superiores. A temática foi pouco ou quase nada analisada pelo Judiciário, pois, ao que se tem conhecimento, os brasileiros que detêm ativos no exterior o fazem mediante a participação societária em empresas estrangeiras, procedendo a declaração das participações tanto à autoridade monetária como fiscal e, com isso, evitando qualquer tipo de questionamento.
O delito de evasão de divisas, disposto no artigo 22 da Lei 7.492/86, introduziu no Direito Penal brasileiro a possibilidade de punição das condutas resultantes da saída irregular de divisas do país ou ausência de declaração de depósitos mantidos no exterior.
Por essa razão, a norma tipifica três hipóteses: a primeira corresponde à operação de câmbio sem autorização do BC que objetiva promover a evasão de divisas tutelando, assim, as reservas cambiais do país. De outro turno, o previsto na segunda parte do caput (remeter divisa para o exterior sem autorização legal) e, ao final do parágrafo único, a tutela penal recai sobre o Fisco, na medida em que a saída de moeda ou divisa para o exterior ou a manutenção de depósitos não declarados à repartição federal acabam por lesá-lo. O artigo 22, portanto, não tutela apenas o Sistema Financeiro Nacional, mas também a proteção da ordem tributária. Todavia, isso não permite afirmar que a falta de declaração ao BC caracterizaria o crime de evasão de divinas, mas, sim, outro tipo penal, a sonegação fiscal.
O dever de informação das disponibilidades mantidas por brasileiros no exterior existe no ordenamento jurídico pátrio desde 1962, quando a Lei 4.131/62 previu que as pessoas físicas e jurídicas domiciliadas no Brasil teriam de apresentar declaração à extinta Superintendência da Moeda e do Crédito sobre os bens e valores que possuíam no exterior.
A partir da edição da Circular 2.911/2001, o BC passou anualmente a editar norma onde estabelece os prazos e limites para que os brasileiros, pessoas físicas ou jurídicas, detentores de ativos no exterior apresentem suas declarações anuais.
Importante destacar que a principal razão pela qual o BC exige a declaração é a de verificar a expectativa do retorno dos capitais para o Brasil, diretriz básica da política cambial brasileira. Ainda, o contribuinte que mantém recursos no exterior tem a obrigação de prestar a Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda à Receita. Com isso, existem duas declarações distintas: uma ao BC, para permitir o controle cambial, e outra à Receita, para apuração de imposto a pagar.
No caso da decisão do STF, tem relevo a análise da questão da evasão de divisas, pois, para o tipo previsto no artigo 22 da Lei 7.492/86, o bem a ser protegido é exclusivamente o controle de operações cambiais, pois a remessa de dinheiro para o exterior, com a intenção de ocultar a sua origem criminosa, passou a ser tratada pela Lei 9.613/98 (crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio).
Com isso, a lei de evasão de divisas busca coibir a saída de valores para o exterior, e por isso que expressamente menciona que será caracterizado o crime pelo depósito não declarado à autoridade competente, no caso o BC, e nunca a Receita.
O descumprimento da declaração ao BC, portanto, implicaria em penalidades administrativas (a MP 2.224/01 definiu a infração como punível com multa pecuniária), e não o crime de sonegação fiscal (contra a ordem tributária), tipificado na Lei 8.137/90, sendo que o agente somente cometerá o crime contra o Sistema Financeiro Nacional do artigo 22 da Lei 7.492/86 se deixar de declarar depósitos, o que não parece ser o caso da falta de declaração de cotas de fundo de investimento.
Essa distinção ocorre em função dos distintos bens jurídicos tutelados pelas normas penais. Essa modalidade de “evasão de divisas” não existe para proteger a ordem tributária (patrimônio fiscal), mas apenas, em termos gerais, a política cambial brasileira (equilíbrio e controle das reservas cambiais).
Para uma melhor compreensão da diferença entre “depósito” e “aplicação em fundos” (o termo mais correto é investimento em cotas de fundo de investimento), há necessidade de se socorrer das definições do Direito Econômico e Financeiro.
O Direito do Mercado de Capitais define fundos de investimento como um veículo de aplicação financeira, resultado da união de múltiplos investidores, com o objetivo de realizar um investimento financeiro para obter um objetivo ou retorno esperado, sem personalidade jurídica. No Brasil, desde o início dos primeiros fundos na década de 1960, a forma determinada para a constituição do fundo foi a contratual em condomínio. Portanto, são aplicadas as regras gerais dos condomínios do artigo 1.315 do Código Civil. Com isso, a liquidez imediata (disponibilidade dinheiro) de um fundo de investimento é muito pequena, na maioria dos casos somente possível quando do encerramento do fundo.
No mundo existem outras formas para a formação de fundos, sendo que nas Ilhas Cayman (território onde estava o fundo tratado na decisão do STJ), são constituídos de maneira contratual de sociedades. Então, naquele país, quem investe em fundo é dele sócio, o que fragiliza a alegação de liquidez do investimento.
Por sua vez, o “depósito”, nos termos da Lei 7.492/86, representa a operação bancária em que os recursos são depositados, por prazo indeterminado, para livre movimentação pelo titular, sem nenhum tipo de remuneração pelo banco. Assim, o banco depositário fica obrigado a restituir o mesmo valor que recebeu, tão logo quando solicitado pelo depositante ou a sua ordem (liquidez imediata). Para os bancos, a principal finalidade de receber os depósitos é ter fomento para operações de crédito. Depreende-se, portanto, que os investimentos em fundo e os depósitos têm funções completamente distintas e, em até certo ponto, antagônicas, pois um visa obtenção de lucro, e o outro, mera guarda de valores.
O próprio BC em suas circulares faz a expressa distinção entre o depósito e as outras formas de bens e valores no exterior, sendo que, quando da edição da norma que determina a declaração de bens no exterior, lista as hipótese de ativos que devem ser declarados, destacando, de maneira inequívoca, o “depósito no exterior” dos demais ativos.
Portanto, parece ser claro que depósito é uma das categorias dos bens que precisam ser declarados ao BC, mas a manutenção de um investimento em fundos, caso não declarado, não comporta o entendimento de caracterização de evasão de divisas. A ampliação do conceito de depósito para outros bens violaria o princípio da reserva legal, o que constitucionalmente é defeso, pois a interpretação deve ser benéfica ao imputado, e não o contrário (proibição de analogia in malam partem).
Com isso, a decisão do STJ traz preocupação, pois o fundamento do entendimento é que a falta de declaração à Receita já seria o suficiente para caracterizar o crime de evasão de divisas, quando em verdade, em razão dos distintos bens jurídicos tutelados pelas normas penais, a modalidade de “evasão de divisas” não existe para proteger a ordem tributária, mas, sim, a política cambial brasileira.
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